O impacto da MP 869 no setor da saúde

Depois da aprovação na Câmara dos Deputados, no último dia 29 de maio foi aprovada, também no Senado, a Medida Provisória n.º 869/2018, editada pelo ex-Presidente Michel Temer no fim de 2018, a qual recebeu 176 propostas de emendas, sendo que ao menos 101 delas foram parcialmente aprovadas na comissão mista e confirmadas pelas duas casas do Congresso Nacional.

Entre as alterações aprovadas, algumas reverberam sobremaneira na área da saúde, que se sustenta por meio do fluxo de dados sensíveis, os quais, em decorrência da sua natureza e do maior potencial lesivo aos titulares em caso de violações, gozam de proteção legal diferenciada.

Assim, como tais dados pautam inúmeros modelos de negócio no setor, como de hospitais e seguradoras, é de suma importância atentar-se às modificações aprovadas, ainda pendentes de sanção pelo presidente da República.

Diogo Silva Marzzoco e Gabriela Silveira Bueno*

24 de junho de 2019 | 08h00

Diogo Silva Marzzoco e Gabriela Silveira Bueno. FOTOS: DIVULGAÇÃO

Depois da aprovação na Câmara dos Deputados, no último dia 29 de maio foi aprovada, também no Senado, a Medida Provisória n.º 869/2018, editada pelo ex-Presidente Michel Temer no fim de 2018, a qual recebeu 176 propostas de emendas, sendo que ao menos 101 delas foram parcialmente aprovadas na comissão mista e confirmadas pelas duas casas do Congresso Nacional.

Entre as alterações aprovadas, algumas reverberam sobremaneira na área da saúde, que se sustenta por meio do fluxo de dados sensíveis, os quais, em decorrência da sua natureza e do maior potencial lesivo aos titulares em caso de violações, gozam de proteção legal diferenciada.

Assim, como tais dados pautam inúmeros modelos de negócio no setor, como de hospitais e seguradoras, é de suma importância atentar-se às modificações aprovadas, ainda pendentes de sanção pelo presidente da República.

Neste contexto, destacamos as alterações abaixo:

a) A possibilidade de compartilhamento de dados de saúde para fins de obtenção de vantagem econômica, quando a finalidade for a prestação de serviços de saúde, de assistência farmacêutica e de assistência à saúde, incluídos os serviços auxiliares de diagnose e terapia, desde que seja em benefício dos interesses dos titulares de dados.

De acordo com a nova redação dada ao art. 11, §4.º, LGPD, fica autorizado o uso compartilhado entre controladores de dados pessoais sensíveis referentes à saúde para fins econômicos, somente nos casos em que esse compartilhamento for necessário para a prestação de serviços de saúde, de assistência farmacêutica e de assistência à saúde, incluídos o diagnóstico e a terapia e em benefício dos interesses dos titulares dos dados.

Essa previsão de compartilhamento, partindo sempre da premissa de que há benefício para o titular, tem como intuito viabilizar a execução de transações financeiras e administrativas que decorrem do uso e da prestação dos serviços contratados, bem como permitir a portabilidade dos dados quando solicitada pelo titular.

No relatório apresentado por Orlando Silva (relator da Comissão Mista que apreciou a MP n.º 869/2018), relativamente à vedação expressa pelo art. 11, §4.º, LGPD, e suas exceções, foi pontuado que “a circulação, conexão e coordenação dos dados pelos diversos agentes envolvidos na contraprestação a serviço contratado são imprescindíveis ao atendimento médico moderno, rápido, eficiente e seguro”. Entretanto, a fim de evitar abusos e melhor precisar para quais finalidades essa comunicação poderá ser feita, optou-se por deixar expresso que tal comunicação se admite em hipóteses relativas a prestação de serviços de saúde, incluindo os serviços auxiliares de diagnose e terapia.

No tocante à inclusão expressa de “assistência farmacêutica”, o objetivo foi de possibilitar o compartilhamento para a consecução de políticas públicas. É o caso, por exemplo, da assistência farmacêutica oferecida no âmbito do SUS, que visa garantir o acesso a medicamentos e insumos para toda população, assim como aos serviços farmacêuticos.

b) Adequação da base legal da tutela da saúde para abarcar serviços de saúde e não apenas profissionais da área da saúde ou entidades sanitárias;

A tutela da saúde, base legal para tratamento de dados pessoais e dados sensíveis prevista pelo art. 7.º, VIII e art. 11, II, ‘f’, LGPD, pode ser invocada também pelos serviços de saúde (estabelecimentos destinados a promover a saúde do indivíduo, protegê-lo de doenças e agravos, prevenir e limitar os danos a ele causados e reabilitá-lo quando sua capacidade física, psíquica ou social for alterada (1)) para justificar suas atividades de tratamento de dados.

Assim, sob o guarda-chuva da tutela de saúde, não somente as entidades sanitárias e os profissionais da área da saúde poderão tratar dados pessoais e dados pessoais sensíveis, mas também os hospitais, clínicas, consultórios, laboratórios e demais estabelecimentos pertencentes à cadeia do setor de saúde, desde que se vise efetivamente o fornecimento de tratamentos em saúde e em benefício dos pacientes e titulares do dados.

Assim, a alteração amplia consideravelmente as situações em que está autorizado o tratamento sob a base legal em comento, graças à amplitude do termo “serviços de saúde” – nomenclatura adotada, porém não definida, na Lei do SUS (Lei n.º 8.080/1990).

c) Vedação à utilização de dados de saúde para fins de análise de riscos na contratação com beneficiários ou negativa de prestação de serviço.

Por fim, a MP promove a vedação da utilização de dados de saúde para seleção de risco na contratação com beneficiários ou negativa de prestação de serviço, prevista no texto sugerido ao artigo 11, §5.º, LGPD.

No relatório legislativo, o relator deputado Orlando Silva foi enfático ao mencionar que “tendo em vista as preocupações com a possibilidade concreta de negativa de acesso ou encarecimento injustos dos serviços de saúde suplementar pelo cruzamento de informações proporcionadas pelo tratamento de dados, decidimos por trazer para o âmbito desta Lei os termos constantes na Súmula Normativa n.º 27, de 10 de junho de 2015, da Agência Nacional de Saúde Suplementar. O instrumento veda a prática de seleção de riscos pelas operadoras de planos de saúde na contratação de qualquer modalidade de plano privado de assistência. Considerando que esta é uma decisão já consolidada e posta em prática no setor, entendemos ser extremamente factível de ser implementada e cristaliza o tratamento justo dos usuários no tocante no acesso à saúde”.

Da leitura isolada da redação do artigo 11, §5.º, LGPD, pode surgir interpretação de que a LGPD imporia proibição terminal de que dados de saúde sejam utilizados para cálculo de risco. Entretanto, ao fazer a devida interpretação sistemática do dispositivo frente ao ordenamento jurídico, sobretudo em observância ao que dispõe a Súmula Normativa n.º 27/2015 da ANS, a qual serviu de inspiração à norma em questão, afasta-se essa desavisada compreensão.

Nesse contexto, cabe destacar que o contrato de seguro é um contrato que, dada a sua natureza, é juridicamente classificado como aleatório, por estar presente a chamada “álea”, termo que diz respeito ao risco de prejuízo. O risco está presente uma vez que a prestação e contraprestação dos serviços são estipuladas no momento da contratação. Entretanto, a prestação da seguradora está condicionada a evento futuro e incerto; cite-se, como exemplo, necessidade de exames, necessidade de procedimentos cirúrgicos, internação, eventos esses que, obviamente, implicam risco financeiro.

Portanto, é inerente ao contrato de seguro o cálculo de risco, notadamente porque tal cálculo poderá pautar o preço da contraprestação a ser quitada pelo segurado. A ANS, inclusive, reconhece – por meio da Súmula Normativa n.º 27/2015 – a existência de mecanismos legais de mitigação de riscos por parte das operadoras de planos privados de assistência à saúde, por meio da aplicação de carência, cobertura parcial temporária (“CPT”) e agravo.

Diante disso, a redação dada pela ANS à Súmula Normativa n.º 27/2015, bem como o entendimento adotado pelo Congresso Nacional, amplamente inspirado na referida normativa, não pretenderam extinguir a análise de risco com base em dados de saúde, mas somente proibir a seleção de risco, para excluir segurados ou deixar de contratar com pessoas que sejam classificadas como de risco alto.

O sistema prevê instrumentos para mitigação de risco, de forma que é possível interpretar que o cálculo do risco é permitido, pois não seria lógica a existência de instrumentos que permitem onerar o contrato em desfavor do segurado para mitigação de risco se o próprio cálculo de risco, em tese, não fosse permitido.

Com efeito a ANS não pretendeu com a Súmula Normativa n.º 27/2015 excluir a análise de riscos, mas, somente, garantir que não haja restrições discriminatórias, tanto no momento da contratação, quanto no decorrer do contrato, ou seja, seleção com base em análise de risco.

Tal fato fica ainda mais explícito quando da análise do próprio anúncio de publicação da Súmula citada, no sitio da Agência Nacional de Saúde Suplementar, realizado no dia 10 de junho de 2015, em que constam as seguintes passagens, de modo a corroborar com o entendimento ora defendido (2):

Com o objetivo de garantir a proteção ao consumidor, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) publica uma nova Súmula Normativa que reforça o entendimento quanto à determinação de que nenhum beneficiário pode ser impedido de adquirir plano de saúde em função da sua condição de saúde ou idade. Também não pode haver exclusão de clientes pelas operadoras por esses mesmos motivos. Ou seja, é absolutamente vedada a prática da chamada seleção de risco por parte das operadoras. Essa norma vale tanto para planos individuais e familiares quanto para planos coletivos empresariais ou por adesão.

Logo, não seria razoável assumir que a análise de risco estaria proibida porquanto é com base em tal análise que a própria ANS permite que sejam aplicadas carência, cobertura parcial temporária (“CPT”) e agravos, os quais são regulados por meio da Resolução n.º 162/2007 da ANS, a qual, em seu artigo 9º e seguintes, trata sobre a declaração de saúde apresentada pelo consumidor, que embase a aplicação das mitigadoras de risco permitidas por parte das operadoras.

Portanto, tendo em vista que o relatório legislativo fez menção à Súmula Normativa n.º 27/2015, a nova redação do artigo 11, §5.º da Lei Geral de Proteção de Dados deve ser interpretada em combinação com a Súmula Normativa nº 27/2015 da ANS que pretende, tão somente, evitar alijamentos com base em seleção de risco, preservada a avaliação de dados de saúde para aplicação de cobertura parcial temporária, carência ou agravos, ante a natureza do contrato de seguros, o qual necessita de instrumentos para equilibrar a dinâmica contratual e mitigar eventual onerosidade excessiva a operadora, diante de declaração de saúde que, por exemplo, indique a existência de doença pré-existente.

(1) Disponível em http://www.anvisa.gov.br/servicosaude/organiza/index.htm

(2) Disponível em: http://www.ans.gov.br/aans/noticias-ans/consumidor/2895-protecao-ao-consumidor-2. Acessado em 2 de junho de 2019

Fonte: Estadão – Diogo Silva Marzzoco e Gabriela Silveira Bueno, advogados

24 de junho de 2019