Além de afugentar investidores e prejudicar o desenvolvimento da indústria no Brasil, a hesitação e emaranhado fiscal envolvendo a comercialização de software cria insegurança jurídica.
Os programas de computador, também conhecidos como softwares, já há algumas décadas fazem parte indissociável do cotidiano das pessoas em todo o mundo. Diante dessa nova realidade, estabeleceu-se no Brasil, já em 1998, o marco regulatório dos softwares, através da Lei 9.609, que dispõe principalmente sobre a proteção de sua propriedade intelectual e sua comercialização no país.
Do ponto de vista tributário, contudo, a legislação não acompanhou a velocidade com que esta nova realidade passou a integrar a vida das pessoas e empresas, o que levou, fatalmente, a discussão sobre a tributação do software aos tribunais.
Neste contexto, foi proferida decisão no emblemático Recurso Extraordinário nº 176.626 do STF, de 1998, que subdividiu os softwares em três categorias: a) softwares standard ou de prateleira, comercializados de maneira uniforme e sob cópias múltiplas produzidas em larga escala, à disposição no mercado para qualquer interessado, com características de mercadoria e sujeito ao ICMS; b) software sob encomenda, desenvolvido integralmente a pedido do usuário, de acordo com suas necessidades exclusivas, e comercializado como cópia única, com característica de prestação de serviços e sujeito ao ISS; e, por fim c) software customizado, baseado em um código-fonte pré-existente, porém alterado para adequar-se aos interesses do usuário final, com natureza de prestação de serviços e sujeito ao ISS.
É de se reiterar que esta decisão, referida até hoje no meio jurídico-tributário, foi proferida considerando-se o contexto legislativo da época, qual seja, o Decreto Lei nº 406, de 1968, que era absolutamente silente quanto à tributação dos programas de computador; daí a necessidade de o Judiciário preencher esta lacuna legislativa com uma jurisprudência tão contundente tanto do ponto de vista da definição e categorização dos softwares, quanto de sua tributação.
Deve-se pontuar, contudo, que, em 2003, foi promulgada a Lei Complementar nº 116, que revogou o Decreto-Lei mencionado acima e se dispôs expressamente a resolver todo e qualquer conflito de competência entre o ICMS e o ISS. E assim o fez em relação aos softwares, na medida em que trouxe, no item 1.05 de sua lista de serviços sujeitos aos ISS, o “licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação”, sem fazer, frise-se, qualquer distinção entre o tipo ou modalidade de software (se de prateleira, sob encomenda ou customizado), ou, ainda, sem excluir do campo de incidência do ISS qualquer parte ou componente da operação, como, por exemplo, o eventual suporte físico do programa de computador.
Diante deste novo cenário legislativo, seria possível concluir que, a partir dali, os softwares, de qualquer modalidade e considerando-se o valor total da operação (licença + suporte físico), seriam tributados única e exclusivamente pelo ISS, afastando-se por completo o ICMS, à parte eventuais discussões sobre o fato de a licença de uso de software consistir em uma “obrigação de dar”, e não “de fazer”, o que impediria a incidência também do ISS, discussões estas que, contudo, somente poderiam ser travadas perante os tribunais judiciais, os quais, por outro lado, têm recentemente flexibilizado esta dicotomia, no sentido de fazer prevalecer a utilidade usufruída a propriamente o serviço prestado, permitindo a incidência deste imposto municipal.
Não foi isso, entretanto, o que aconteceu. Ignorando a nova legislação e a própria Constituição Federal, e continuamente lançando-se mão da decisão do STF de 1998, que, reitere-se, foi proferida com base numa legislação já ultrapassada, tanto os Estados, aguçados pela já conhecida guerra fiscal, como a própria jurisprudência e doutrina continuaram a se posicionar pela incidência do ICMS sobre as operações com software, seja no caso da modalidade “de prateleira”, seja meramente sobre o suporte físico do programa de computador.
A título ilustrativo, podemos citar o exemplo do estado de São Paulo, que, por anos após a LC 116, definiu como sujeito ao ICMS paulista “o dobro do valor de mercado do suporte informático, acrescido do valor do IPI, Imposto de Importação, bem como de qualquer outros impostos, taxas, contribuições e despesas aduaneiras”. Não bastasse, ao total arrepio da Lei Complementar nº 116, o governo paulista passou a exigir, em 2015, o ICMS sobre o valor total da operação, ou seja, inclusive sobre a licença de uso do programa, com base no Convênio 181/2015, que autorizou os Estados a “concederem redução de base de cálculo nas operações com softwares”.
Tamanha foi a insurgência do mercado que, no ano seguinte, o estado de São Paulo editou o Decreto nº 61.791/2016, suspendendo a cobrança do ICMS sobre softwares neste Estado até que haja a devida regulamentação, o que ainda não ocorreu.
Isso tudo sem falar dos calorosos debates existentes, há anos, acerca da incidência do ICMS no caso de softwares comercializados via download (ADIs nº 5576/SP e nº 1945/MT, no STF), não se podendo duvidar, ainda, que se passe a exigir o imposto estadual até mesmo no caso de operações na nuvem (SaaS), o que seria ainda mais absurdo, dada a inexistência de circulação física e até mesmo de transferência de titularidade do programa, que, para alguns, sequer é licenciado neste ambiente de contratação.
Toda esta indefinição, é claro, só pode gerar desconforto e insegurança, além de afugentar investidores e prejudicar o desenvolvimento desta indústria no Brasil, razão pela qual se clama pelo respeito, por parte do governo e de todos os players do mercado, à Constituição e às competências tributárias legalmente definidas.
Computerworld
11 de setembro de 2017